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Reflexões sobre as psicopatologias do contemporâneo

Atualizado: 25 de mar. de 2021


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As mudanças no modo de vida do indivíduo, através de uma leitura histórica, antropológica e sociológica até o que chamamos de contemporaneidade, proporcionando uma visão global para a trajetória do homem e seus laços sociais, sua relação com o desejo e a forma de representação que fornece sentido a própria existência, hoje marcada pela decadência dos grandes referenciais de avaliação que constituíam o mundo social e, portanto, a vida, onde o que antes permitia que as escolhas dos sujeitos fossem norteadas por sólidos códigos de interpretação que eram dados pela tradição, pela autoridade ou pela religião, sendo substituido por uma perspectiva de decadência, não conferindo coesão à sociedade, coesão essa que pode ser lida como forma de simbolizar o sentido da vida. Sem um código que permita decifrar os acontecimentos de seu mundo, Bauman (2001) chama de 'modernidade líquida' esse tempo em que qualquer convicção assumida torna-se transitória, frágil, prestes a se volatilizar e dar lugar a outra a qualquer momento, o que para a psicanálise toma sérias repercussões clínicas, como a proliferação de patologias em que os atos parecem substituir a palavra. A predominância dos atos sobre as palavras sinaliza uma hegemonia de respostas subjetivas pela via do gozo e encontramos a nomenclatura de "novos sintomas" aquilo que pode ser lido como uma clínica das impulsões: bulimia, anorexia, novos tipos de adicções, hiperatividade, etc. (LUSTOZA et al, 2014)

Libermann (2010) nos aponta que as chamadas “patologias atuais” não fariam referência a uma patologia específica, mas descreveriam conjunto de distúrbios psíquicos com características psicodinâmicas semelhantes e considerou articular em três eixos, sendo: sintomáticos ou fenomenológicos, metapsicológico e sociológico, onde do ponto de vista dessas características sintomáticas compreenderam quadros de depressão, organizações psicossomáticas, uso de drogas, transtornos alimentares, personalidades fronteiriças e/ou narcisistas; já nos aspectos metapsicológicos, estariam presentes o reforço às defesas narcisistas e a dificuldade em manter laços afetivos, o que seriam as premissas para a insuficiência de representações psíquicas que consequentemente acarretam a angústia intensa, levando à substituição da atividade simbólica por manifestações somáticas ou em ato, ou seja, o pensamento dá lugar para a ação. No que se compreendeu como eixo sociológico, refletiu-se que à partir do avanço científico e tecnológico, a adesão a costumes mais flexíveis propiciaram uma vida mais longa e com melhor qualidade, contudo a contrapartida:


(...) trouxe a possibilidade de negação do poder do outro, uma vez que a tecnologia acena com a ilusão de satisfação imediata dos ideais narcisistas e ainda, articulando a perda dos limites, das responsabilidades e das funções atribuídas a determinados papéis sociais, temos como consequência uma angústia intensa frente a um vazio de representações (internas e externas). (LIBERMANN, 2010)


Frente a essas exigências subjetivas apresentadas pelos pacientes, o psicanalista necessita mudar também as questões que envolvem o enquadre e postura no que concerne às implicações técnicas, onde se articula como as prerrogativas de Freud poderiam ser relacionadas a uma das grandes transformações da psicanálise contemporânea:


A importância do trabalho da mente do analista na relação com seu paciente (que poderíamos considerar implícita nas ideias de Bion [1970] sobre a mente em desenvolvimento; no conceito de espaço potencial de Winnicott [1953]; na concepção de Green sobre o trabalho do negativo [1990], na teoria do campo analítico do casal Baranger [1961] e no recurso à figurabilidade do analista descrito por César e Sara Botella [2002]). (LIBERMANN, 2010)


Hoje ao paciente que chega a análise não basta apenas relembrar conteúdos ou de revivê-los na transferência.


"O paciente necessitará viver pela primeira vez aquelas experiências que, por sua potencialidade traumática, não puderam ser abarcadas pelas representações (...) implicando também a transformação do papel do analista em seu contato com os pacientes." (LIBERMANN, 2010)


Na obra A obesidade “não toda” ou quando a gordura fala, Roizman (2017) reúne perspectivas sociológicas, filosóficas, comportamentais, política e econômica, médica, estética e gastronômica que articulam com a psicanálise apresentando um grande quadro das questões que envolvem os distúrbios alimentares e em grande medida desencadeiam os quadros de obesidade, permitindo que possamos refletir a mudança nas sociedades, a forma de nos relacionarmos com a comida e como esta sempre esteve envolvida intrinsecamente com formas de relação social, tanto em tradições costumeiras como datas comemorativas, como também em nossa expressão espiritual e religiosa, ou seja, uma forma simbólica de conexão com algo maior e provedor de sentido.

Roizman (2017) também enfatiza o empobrecimento da terapêutica contemporânea que reduz o sofrimento humano ao seu sintoma e por fim, a busca de sua eliminação e que implica a retirado do sujeito do inconsciente, sujeito esse desejante e atuante em seu modo de sofrimento, sem possibilidade de traz a luz ou permitir a decifração do sentido do sintoma.

Ainda, em “A obesidade “não toda” ou quando a gordura fala”, o autor também propõe novas formas de postura na clínica para o psicanalista, ao que sugere as proposições postuladas por Libermann, como já citado.

Em "A psicanálise do sensível", Fontes (2010) nos presenteia com um resgate do ensinamento Freudiano, recapitulando sua investigação das representações no corpo até a nomeação de “doenças da alma” de Kristeva (1993), onde o efeito das transferências no campo sensível (corpo) convoca a psicanálise a subversão do mundo contemporâneo, rompendo, refazendo e resgatando o tempo e o espaço das revoltas, como forma de contrapor aquilo que faz parte da hoje chamada sociedade do espetáculo.

Kristeva (1993) apud Fontes (2010) considera que:


“A vida do homem atual situa-se entre os sintomas somáticos (a doença e o hospital) e a colocação de seus desejos em imagens (o sonho diante da TV ou do computador). E que para além das diferenças entre esses novos sintomas temos um denominador comum: uma dificuldade crescente de representação psíquica” (KRISTEVA, 1993 APUD FONTES, 2010)


Em suma, o que Kristeva nos informa é a dificuldade do homem contemporâneo em ligar o corpo a palavra e de oferecer nomeações, o que retoma toda nossa pesquisa sobre os reflexões teóricas sobre a contemporaneidade, onde a partir de muitos saberes chegamos a um denominador comum, a queda das representações e seu nexo causal preso a evolução histórica do homem e sua sociedade e suas novas formas de laços sociais, bem como a deficiência de lidar com os conflitos apresentados com a demanda do outro e a facilidade que a vida virtual e tecnológica possibilitou de se anular e cancelar relações e até mesmo a ilusão da conquista da morte e do envelhecimento com toda as ofertas de uma vida sem rugas, como uma fórmula para o ser feliz, também articulado por Fontes (2010) em sua obra.

Retomando uma leitura antropológica estruturalista, Lévi Strauss (1949) nos elucida que “(...) todo mito é uma procura do tempo perdido. Em nossa civilização mecânica, não há mais lugar para o tempo mítico, senão no próprio homem”, percebemos assim, uma sociedade que se afasta cada vez mais do coletivo (compartilhado) estabelecendo a primazia do que é individual (não compartilhado), construindo indivíduos, cujo as formas de representação simbólica, que poderiam ser dadas através desses mitos fundadores, que também são o berço para as instituições reguladoras e hoje apresentam essa queda e estão fadadas as desconfianças das populações, pois já não respondem às necessidades e nem oferecem a promessa de segurança, deixam à deriva o homem que se lança a um modelo consumista (do industrializado, do fast-food, do pronto), como forma de abarcar o próprio vazio.

Fernando Hartmann (2021) nos relembra que em o “Mal-estar na civilização” (1930), Freud articula que a realidade não nos parece um caos, pois nós procuramos, através de sistemas, organizá-la, mas quando isso acontece, quando a realidade é apresentada como um caos, ou algo sem sentido, sem lei, vem a angústia, e retiraremos da realidade a angústia, o que será tratado no episódio do netinho de Freud, em "Além do Princípio do Prazer" (1901) que brinca com o carretel, repetindo a ausência e presença da mãe, colocando-se como ativo em uma situação onde é um sujeito passivo, ou seja, a relação com esse outro mãe, através deste jogo/brincadeira ele consegue "criar um sistema de repetição onde passa a controlar a sua realidade obtendo uma satisfação com esta repetição." O autor ainda traz a reflexão em seu artigo para a Associação Psicanalítica de Porto Alegre que podemos, portanto inferir que:


(...) para nos livrarmos do acaso, do caos, das forças da natureza, da finitude e das relações adversas com outros humanos, nós construímos sistemas de repetição, criamos o calendário, os dias da semana, os meses, os anos, contamos as coisas. Ninguém sabe se vai estar vivo daqui a uma hora, mas sabe que vai haver um meio-dia, que no final da semana haverá o Domingo, que houve a sexta-feira. Assim nós criamos a repetição para nos defender do acaso. Pois o acaso é isso, a gente não sabe quando as coisas vão acontecer, quando vamos morrer, não temos controle do acaso, a repetição sugere um controle. Através do discurso nós constituímos sistemas de domínio e poder sobre a natureza, sobre a realidade, enfim, sobre os outros humanos.


Portanto, ao tentar eliminar o próprio vazio e não o conseguindo, este homem contemporâneo, sem poder pensar ou se representar, somatiza ou coloca em ação a sua empobrecida ou ineficiente habilidade de construção simbólica e até mesmo organizar o próprio sentido de sua existência, sem recorrer às propostas oferecidas como produto a ser consumido como forma de aquisição de identidade, ou como propôs de maneira poética, exemplificado em sua canção “É fim de mês”, o cantor Raul Seixas (1945-1989)Pra você ver que eu procurei/Eu procurei fumar cigarro Hollywood/Que a televisão me diz que é o cigarro do sucesso/Eu sou sucesso eu sou sucesso


OBS: Este texto foi produzido como parte da pesquisa na turma de Iniciação Cientifica do curso de Psicologia da Uninove sob o tema "AS PSICOPATOLOGIAS NO CONTEMPORÂNEO" orientado pela Profa. Dra. Rosana Sigler.


Referência Bibliográfica: BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001 FONTES, Psicanalise do Sensível: fundamentos e clínica. Ed. Idéias & Letra, São Paulo, 2010.

HARTMANN, F. Hipnose e pulsão de morte na psicologia das massas. Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2021. Disponível em <https://www.appoa.org.br/correio/edicao/288/hipnose_e_pulsao_de_morte_na_psicologia_das_massas/722> Acessado em 23/03/2021 LÉVI-STRAUSS, C. (1949). A eficácia simbólica, in Antropologia estrutural. Ed. Tempo Brasileiro, 1996.

LIBERMAN, Z. Patologias atuais ou psicanálise atual. Rev. bras. psicanál vol.44 no.1, São Paulo, 2010. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2010000100007> Acessado em 23/03/2021

LUSTOZA. R. Z. et. al. "Novos sintomas" e declínio da função paterna: um exame crítico da questão. Ágora (Rio J.) vol.17 no.2, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982014000200003> Acessado em 23/03/2021

ROIZMAN, D. H. A obesidade "não toda" ou quando a gordura fala. Ed. Escuta, São Paulo, 2017.



Fabiana Louro

Graduando-se em Psicologia pela Universidade Nove de Julho, possui formação em Artes Cênicas no Célia Helena Centro de Artes e Educação e em Psicanálise com abordagem Junguiana pelo Instituto Luz (2015). Concluiu cursos livres em Arteterapia e Arteterapia sob o olhar da neuropsicologia (2014-2016). Estudou por mais de uma década as Culturas Xamânicas ancestrais e as tribos indígenas americanas, incluindo o estudo dos efeitos das ervas de poder na psiquê. Membro fundador da LAPP - Liga de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade Nove de Julho, pesquisadora dos temas da infância e Juventude, com ênfase ao neurodesenvolvimento infantil: Autismo, protocolos de risco e a clínica psicanalítica, participando do Ciência e Profissão de 2018. Faz parte do grupo de Iniciação Cientifica do Curso de Psicologia da Uninove com o tema: As Psicopatologias do Contemporâneo com orientação da Profa. e Dra Rosana Sigler. Participou como Assistente do Curso de Extensão promovido pela LEXPARTE/FURG com orientação do Prof. Dr. Fábio Dal Molin, sob o tema: As Origens da Psicanálise em Édipo/Sofócles e Hamlet/Shakespeare é protagonista de oficinas e grupos de estudo com os temas: Oficina do Inconsciente: Um olhar através da interpretação dos sonhos, arte e os contos de fadas; Oficina de Arte & Psicanálise: um diálogo entre expressões artísticas e a sua dinâmica com o inconsciente e Shakespeare e a Psicanalise: O Estudo dos conceitos psicanalíticos através do sujeito shakespeariano e monitora dos grupos de estudo Mitos no Divã e Desvendando Lacan.

 
 
 

4 comentários


Ébana Lis Lima
Ébana Lis Lima
26 de mar. de 2021

Gostaria de informações da Oficina do Inconsciente: Um olhar através da interpretação dos sonhos, arte e os contos de fadas.

otimo texto.

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fabianalouro1
fabianalouro1
26 de mar. de 2021
Respondendo a

Ebana, bom dia! Infelizmente esse Oficina não está ocorrendo nesse semestre. Acompanhe nossa página e redes sociais. Avisamos sempre quando abrem. Abraços!


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Clélia de Fátima Louzada
Clélia de Fátima Louzada
24 de mar. de 2021

Obrigada por compartilhar.....

Pode passar mais informações sobre o grupo de estudo?


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fabianalouro1
fabianalouro1
24 de mar. de 2021
Respondendo a

Olá Clélia, bom dia! De qual grupo de estudo você pergunta? Quanto ao texto, foi produção do trabalho de pesquisa da IC, mas este grupo não é aberto, os alunos são selecionados através de processo de seleção da Universidade. A LAPP tem alguns grupos de estudo em andamento e todo o semestre abre novos programas. Acompanhe por aqui ou em nossas redes sociais @lapp.uni9 Abraços e obrigada pela apreciação!!!! 😘

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