top of page

Quando o mais importante da jornada não é o destino, mas ao que nos destina!  

Há viagens que não se medem em quilômetros, mas em camadas de sentido. Minha ida à Europa não foi apenas turística: foi a busca por algo que, por mais que eu tentasse nomear, escorria pelas frestas do significante. Era, talvez, o desejo de tocar — ainda que à distância — o lugar onde o discurso da psicanálise foi encarnado, vivido, escutado.

Essa viagem não foi planejada como um projeto antigo, mas nasceu de acontecimentos recentes — inesperados, intensos, transformadores. A vida, como que em uma coreografia secreta, pareceu alinhar as estrelas: um desejo que nasceu aos 13 anos de idade, entre um gesto de rebeldia e um encantamento quase mítico por certas figuras e lugares, encontrou finalmente suas condições de realização. Tempo, recursos, disposição — tudo se fez possível.

Mas como toda realização verdadeira, essa não se deu apenas no plano do "concreto". Em torno desse núcleo — o sonho antigo de ir à Europa — girava algo mais vasto, mais profundo e mais real: o retorno ao berço simbólico da minha profissão.

Em Paris, caminhei até o número 5 da Rue de Lille. Sabia, desde antes, que não seria possível entrar na casa de Jacques Lacan. Ainda assim, cheguei. Diante da fachada, me deixei atravessar pela emoção — olhos marejados, como quem lê não apenas letras, mas marcas. Lá estava a placa:

Jacques Lacan (1901–1981)

A pratiqué ici la psychanalyse de 1941 à sa mort.

(Exerceu aqui a psicanálise de 1941 até sua morte.)

 

A frase é curta, mas cheia de tempo. Tempo que Lacan passou ali escutando, falando, escrevendo, transmitindo. E eu, em silêncio, escutava agora o entorno: as calçadas, os cafés, os vestígios de uma rotina que ele deve ter percorrido milhares de vezes. Era uma leitura emocional da cidade, feita não por olhos turísticos, mas por uma escuta que, há mais de uma década, tenta ouvir o que Lacan nos ensinou sobre o sujeito dividido, o desejo e a linguagem.

05 Rue de Lille - Paris/FR
05 Rue de Lille - Paris/FR

 

Paris me surpreendeu. Talvez não tenha sido exatamente como eu fantasiava. Uma cidade atravessada por seus próprios sintomas sociais — desigualdades, pressa, tensões. Mas esse não é o eixo deste relato. O que quero registrar é como estar ali, ainda que do lado de fora, foi pisar — simbolicamente — nas águas profundas do ensino que sigo tentando escutar. Foi encontrar, no real do muro fechado, a metáfora de um saber que nunca se entrega por inteiro, que nos escapa, mas insiste.


 Contudo, o ponto mais tocante desta travessia foi em Londres. O número 20 da Maresfield Gardens, NW3 5SX, endereço da última casa de Sigmund Freud — hoje, o Freud Museum. Ao entrar, guiada por um áudio em meu idioma natal, senti de imediato o efeito do significante em sua materialidade. Sim, perdemos muito nas traduções, mas em português, as palavras me tocam de outro modo: elas não apenas transmitem sentido, elas me dizem vida.

 

Chorei. Chorei desde a antessala, passando pelos corredores, pela biblioteca, o consultório — aquele mítico divã. Chorei ao ver os objetos pessoais de Freud, Martha e Anna Freud. As estatuetas, os livros, os móveis. Mas chorei também diante dos jovens estudantes, numa aula viva dada ali mesmo, num cômodo adaptado como auditório. O encontro do passado com o presente, da madeira antiga com os grandes telões modernos, me atravessou de uma forma que talvez eu ainda não saiba simbolizar por completo.

 

A casa inglesa parece conter não só móveis e relíquias — mas restos de voz. Como se o tempo ali fosse outro, como se o silêncio fosse habitado. Um espaço onde o significante se enlaça ao objeto perdido, onde a memória não é história linear, mas pulsação.


 

Se Freud nos ensinou que os sonhos são uma forma de realização de desejo, talvez esta viagem tenha sido a travessia de um desejo que, mesmo realizado, permanece faltante. Porque o desejo, como Lacan nos lembra, não se satisfaz com o objeto: ele é o movimento do desejar. Há sempre algo além, algo que falta, algo que faz continuar.

  

E se minha escuta encontrou em Paris e Londres um eco de seus mestres, sinto agora que o desejo pulsa por novos destinos — Viena, talvez. Não apenas por geografia, mas por sentido. A cidade onde "tudo começou" para a psicanálise, e, sem que eu soubesse, também para mim: como profissional, sim, mas também como paciente.

 

Freud não me deixou apenas uma profissão. Ele me deixou a psicanálise — que me deu vida. Que me fez existir, continuar, amar, desejar. E é por isso que este relato não se encerra: ele é, como o desejo, um movimento inacabado. Fabiana Louro Psicanalista com formação em Psicologia, praticante da psicanálise, com especialização em Clínica Psicanalítica de orientação lacaniana pelo Instituto ESPE. Atua como coordenadora de oficinas com temas freud-lacanianos na LAPP–UNI9, além de atender em consultório particular. É supervisora clínica e ministra cursos semestrais voltados à transmissão da psicanálise, com foco na obra de Freud e Lacan.

 
 
 

Comentários


  • facebook
  • instagram
  • youtube

©2020 por LAPP. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page