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Quem escuta as e os estudantes surdos? A deficiência auditiva nas universidades

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  • 24 de fev. de 2023
  • 8 min de leitura

Por Michela Ruta

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Imagem disponível na página facebook https://www.facebook.com/claudialibras/


O ensino superior, sendo já em si um lugar de privilégio, apresenta várias dificuldades para os indivíduos que possuem algum tipo de deficiência. Segundo o Censo da Educação Superior (IBGE, 2019), apenas o 0,6% dos matriculados em cursos de graduação foi de pessoas com deficiência, e o 13% destes indivíduos são pessoas com deficiência auditiva. Dessa forma, quando encontramos uma PCD dentro de um curso de ensino superior, precisamos parar para considerarmos quantas adversidades ela já superou para chegar onde está, ao nosso lado, nas salas de aula (PACHECO e ALVES, 2007).


Mas quem é que escolhe quem pertence nesse lugar dentro das universidades? Historicamente, sabemos que a exclusão, o apagamento e aniquilação das pessoas com deficiência aconteceram ao longo dos últimos séculos, a partir de um olhar positivista e capitalista do ser humano, que começou a ser entendido como Produtor de riqueza, em vez de ser valorizado como pessoa em si. Dessa forma, se inscreve a visão capacitista que enxerga as pessoas com deficiência como sendo menos valiosas por não se encaixarem nos padrões hegemônicos do corpo, e sendo estas alvo de discriminação expressa e/ou velada (MELLO, 2016; PACHECO e ALVES, 2007). Enquanto as políticas públicas avançam no sentido da defesa dos direitos humanos das PCD, a ideologia coletiva capacitista continua a sua expressão ativa em todos os ambientes da nossa sociedade, inclusive na educação (PACHECO e ALVES, 2007).


Pela Psicologia Social Crítica, entendemos que os indivíduos não só são produtos da história, das crenças e concepções de uma determinada época, mas são também os criadores e mantenedores destes sistemas, e que as relações que surgem entre as instituições e os indivíduos são mediadas pelas ideologias predominantes subjacentes (GRUDA, 2016). A desvalorização do sujeito ainda segue a lógica de quem tem o falo, quem cria o discurso e nomeia o Outro como não digno de receber os mesmos privilégios (BUTLER, 1990), assim, quem, de fato, detém o poder dentro de uma instituição, ainda mais quando for privada e com um funcionamento predominantemente hierárquico, determina os recursos que são disponíveis ao Outro. Por isto, ao considerar as relações de poder, podemos entendê-las como um mecanismo de controle que visa à manutenção do domínio dos corpos dissidentes e diferentes (FOUCAULT, 1979). Assim, quando as instituições de ensino superior preservam as restrições de barreiras nos seus serviços, acabam convalidando, promovendo e mantendo os modelos hegemônicos de exclusão, segregação e discriminação.


Então, volta a pergunta que não quer se calar, quem é que efetivamente possibilita que as PCD continuem seus estudos e não desistam? A nível legislativo, além da própria constituição de 1988, existem leis que protegem o pertencimento das PCD dentro da educação em todos seus níveis. A acessibilidade para pessoas surdas (e, no geral, para pessoas com deficiência), é garantida pela LEI de INCLUSÃO, de 2015, que no seu Art. 4º determina o seguinte:


- Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.


§ 1º Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.


Continuando, com o Decreto Nº 5.626, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2005, foram definidas e regulamentadas “as especificidades sobre a presença de um intérprete dentro das instituições do ensino superior”:


Art. 23. As instituições federais de ensino, de educação básica e superior, devem proporcionar aos alunos surdos os serviços de tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa em sala de aula e em outros espaços educacionais, bem como equipamentos e tecnologias que viabilizem o acesso à comunicação, à informação e à educação.


§ 1º Deve ser proporcionado aos professores acesso à literatura e informações sobre a especificidade lingüística do aluno surdo.


§ 2º As instituições privadas e as públicas dos sistemas de ensino federal, estadual, municipal e do Distrito Federal buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar aos alunos surdos ou com deficiência auditiva o acesso à comunicação, à informação e à educação.


Contudo, entende-se que essas leis e decretos, infelizmente, não são sempre respeitadas. Nota-se que o individualismo (GRUDA, 2016), ou seja, o fato de atribuir ao indivíduo a responsabilidade da própria condição, para as PCD, continua marcando a sua presença nas universidades. A partir do momento que uma pessoa surda ou com deficiência auditiva se matricula numa universidade, avisando das suas necessidades, e começa um curso superior, não é responsabilidade dela ter que procurar um intérprete de libras, nem é o papel dela ter que pedir repetidamente a presença de tal profissional na sala de aula, pois a instituição de ensino superior deveria já estar preparada a suprir essas necessidades específicas, deveria ter pronto um plano de ação para superar as barreiras enfrentada pelas PCD (GARCIA, BAGARIN E e LEONARDO, 2018).

A universidade é legalmente responsável para providenciar o serviço contratado, deve se encarregar e assegurar a disponibilidade de um intérprete para qualquer atividade que seja necessária ao cumprimento do curso de graduação, isso inclui não só as horas de aulas e os estágios práticos obrigatórios (GARCIA, BAGARIN E e LEONARDO, 2018), mas também as horas de atividades extracurriculares que fazem parte do currículo de graduação, e que são de livre escolha da/do discente. Caso a instituição não cumpra com o esperado, pode ter repercussões e perder o reconhecimento do MEC (BRASIL, 1996; BRASIL, 1999; BRASIL, 2015). No caso específico dos cursos de Psicologia, ainda deve ser considerado o Código de Ética do Psicólogo, no qual é especificado que o profissional de Psicologia atuará ativamente para o desmonte da discriminação e preconceito (CFP, 2005).

A falta do respeito do direito básico à presença do intérprete, para as pessoas surdas ou com deficiência auditiva, impede a efetiva participação da vida em sala de aula, do seu convívio na sociedade, e ainda mais especificamente na possibilidade de obter um ensino completo, que é determinante para o futuro nível de bem-estar econômico do indivíduo (PACHECO e ALVES, 2007).

Para mais, precisa-se considerar as consequências a nível psíquico dessa recusa, que pode reativar a ferida narcísica nos sujeitos, possibilitando uma regressão, uma depreciação da visão de si, da própria autoestima, corroendo o ideal do eu que o indivíduo criou para si mesmo (MARCOS, 2016), e podendo isso levar o estudante com deficiência à auto-exclusão e afastamento das aulas, ao fracasso escolar e até ao surgimento de transtornos mentais como ansiedade e depressão, senão chegar a uma fragmentação psicótica de si completa ou ao suicídio. Quando as possibilidades de uma vida plena e o reconhecimento dentro da sociedade são impedidas, as repercussões no indivíduo são enormes.


Além de providenciar um profissional de libras, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394 de 1996, no cap V, art. 59, garante:


III - professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns;


E complementando com a Lei 14.191 de 2021:


Art. 60-B. Além do disposto no art. 59 desta Lei, os sistemas de ensino assegurarão aos educandos surdos, surdo-cegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas materiais didáticos e professores bilíngues com formação e especialização adequadas, em nível superior.

e no art. 79


§ 3º Na educação superior, sem prejuízo de outras ações, o atendimento aos estudantes surdos, surdo-cegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas efetivar-se-á mediante a oferta de ensino bilíngue e de assistência estudantil, assim como de estímulo à pesquisa e desenvolvimento de programas especiais.


Dessa forma, a universidade deve promover a atualização dos professores e dos materiais didáticos para poder efetivamente lidar com a situação de uma pessoa surda na sala de aula. O sentimento de castração ligado à impossibilidade de providenciar um ensino adequado, além do mal-estar possivelmente gerado pelo encontro com aquilo que é entendido como infamiliar (ANDRADE e SOLÉRA, 2006), pode-se refletir no surgimento de apatia para com o aluno com deficiência, e fomentar ainda mais a sua exclusão nas salas de aula. É inaceitável que um professor diga que o estudante surdo pode ser dispensado da aula no dia que o intérprete não estiver presente, soluções alternativas precisam estar disponíveis imediatamente no caso que o profissional de libras não esteja à disposição num determinado dia.


Enquanto as leis da União protegem a inclusão das pessoas surdas ou com deficiência auditiva, surgem outros questionamentos. As universidades privadas têm efetivo interesse em ter PCD nas salas de aula? Se esses indivíduos são entendidos como gastos adicionais, dentro de uma lógica capitalista neoliberal, como o Estado pode providenciar sustentação para efetivar o ingresso e permanência das PCD dentro das universidades privadas? A máquina da educação é um sistema muito complexo, ao mesmo tempo que precisamos apontar as falhas da instituição privada, é necessário também responsabilizar o Estado para efetivar as leis que aprova com incentivos para as universidades e apoio financeiro para aquelas instituições que efetivamente atuam para a inclusão das PCD.


A luta pela inclusão pertence ao nosso momento histórico, como estudantes e futuras, futures e futuros psicólogos, é o nosso lugar e responsabilidade se manifestar ao lado das e dos estudantes surdos, ou com outro tipo de deficiência, que, infelizmente, são prejudicados pelas instituições de ensino superior. Enquanto esse pequeno ensaio mostrou alguns aspectos teóricos, precisamos também agir na prática. Assim, a LAPP pede o vosso apoio para a situação vivida pela nossa colega ❤️ Link: https://chng.it/vR5K2HCP2s



Referências:


ANDRADE, Maria Lúcia de Araújo; SOLÉRA, Márcia Oliva. A deficiência como um “espelho perturbador”: uma contribuição psicanalítica à questão da inclusão de pessoas com deficiência. Mudanças – Psicologia da Saúde, 14 (1) 85-93, jan-jun 2006.


BRASIL, 1996. LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm#:~:text=L9394&text=Estabelece%20as%20diretrizes%20e%20bases%20da%20educa%C3%A7%C3%A3o%20nacional.&text=Art.%201%C2%BA%20A%20educa%C3%A7%C3%A3o%20abrange,civil%20e%20nas%20manifesta%C3%A7%C3%B5es%20culturais>. Acesso em 23 fev. 2023.


BRASIL, 1999 - DECRETO Nº 3.298, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1999. Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm>. Acesso em 24 fev. 2023.


BRASIL, 2005 - DECRETO Nº 5.626, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2005/decreto-5626-22-dezembro-2005-539842-publicacaooriginal-39399-pe.html>. Acesso em 20 fev. 2023.


BRASIL, 2015 - LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm >. Acesso em 20 fev. 2023.


BRASIL, 2021. LEI Nº 14.191, DE 3 DE AGOSTO DE 2021. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14191.htm#art2>. Acesso em 23 fev. 2023.


BUTLER, Judith. 1990. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. 21 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (2021).


CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução n.º 10/05, 2005. Código de Ética Profissional dos Psicólogos. Psicologia, ética e direitos humanos. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo-de-etica-psicologia.pdf>. Acesso em 23 fev. 2023.


FOUCAULT, Michel. (1976). História da Sexualidade. A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Paz Terra, v.1, 2020.


GARCIA, Raquel Araújo Bonfim; BAGARIN, Ana Paula Siltrão; LEONARDO, Nilza Sanches Tessaro. Acessibilidade e permanência na educação superior: percepção de estudantes com deficiência. Psicologia Escolar e Educacional, SP. Número Especial, 2018: 33-40. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.scielo.br/j/pee/a/n9MVpKJ5r7fTknh9rVv9rdc/?lang=pt&format=pdf>. Acesso em 22 fev. 2023.


GRUDA, Mateus Pranzetti Paul. Breves considerações, comentários e ideias acerca de uma Psicologia Social Crítica. Pesqui. prát. psicossociais, São João del-Rei , v. 11, n. 2, p. 514-526, dez. 2016 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082016000200019&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 22 fev. 2023.


IBGE - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Resumo técnico do Censo da Educação Superior 2019 [recurso eletrônico]. – Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2021. Disponível em: <https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/estatisticas_e_indicadores/resumo_tecnico_censo_da_educacao_superior_2019.pdf>. Acesso em 23 fev. 2023.


MARCOS, Cristina Moreira. A introdução do narcisismo na metapsicologia e suas consequências clínicas. Analytica, São João del Rei , v. 5, n. 8, p. 6-30, jun. 2016 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-51972016000100002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 23 fev. 2023.


MELLO, Anahi Guedes de. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csc/a/J959p5hgv5TYZgWbKvspRtF/>. Acesso em 24 fev. 2023.


PACHECO, Kátia Monteiro De Benedetto; ALVES, Vera Lucia Rodrigues. A história da deficiência, da marginalização à inclusão social: uma mudança de paradigma. Acta Fisiátr. [Internet]. 9 de dezembro de 2007. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/actafisiatrica/article/view/102875>. Acesso em 24 fev. 2023.


 
 
 

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