O Psicanalista e o Xamã: A Operação simbólica na análise
- fabianalouro1
- 9 de jul. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 5 de fev. de 2023

No decorrer de minha trajetória passei anos em práticas e estudos sobre o xamanismo, é claro que naquela época, isso ainda era uma novidade para o Brasil e estávamos todos tateando esse conhecimento. Porém, os caminhos da vida são inquietantes, o mesmo vento que te joga para o norte, também te leva para o sul e foi assim que acabei na Psicanálise.
Já nos estudos em Psicanálise encontrei um paralelismo entre a prática do Xamã e a do Psicanalista, proposta essa vinda de Levi-Strauss (1949), que sugeriu que ambas teriam a eficácia simbólica, ou seja, o fornecimento de um sistema de referência que possibilite com que interpretações contraditórias possa se integrar, o que equivale a dizermos que ambas levam a um processo que possibilita que um indivíduo considerado inadaptado ou instável por uma sociedade, possa se reconhecer curado.
É a eficácia simbólica que garante a harmonia do paralelismo entre mito e operações. Segundo o antropólogo, na cura da esquizofrenia, o médico realiza as operações, e o paciente produz seu mito. Na cura do xamã é este que fornece o mito, e o paciente realiza as operações. O xamã e o psicanalista buscam provocar uma experiência, e ambos conseguem fazê-lo reconstituindo um mito que o paciente deve viver ou reviver.
O Xamanismo é um mito social que o paciente recebe do exterior e que não corresponde a um estado pessoal antigo. O Xamã Fala e com isso induz a ab-reação, através do estreitamento entre mito e realidade. É o xamã que fala pelo sujeito, pergunta e ao mesmo tempo responde conduzindo o paciente ao que ele deve se convencer.
A Psicanálise atua com o mito individual que o paciente constrói com elementos tirados de seu passado. O Psicanalista Escuta, mas é o paciente que ao falar, entra em contato com aquilo que nem sabia que havia esquecido, ao relembrar e reviver certas situações que, no trabalho da transferência, se dá a reorganização do conflito. A fala do analista fica organizado no lugar do Outro, possibilitando através do ato analítico que o analisando recebe sua própria mensagem invertida. (Dunker, 2016)
Levi-Strauss (1949) ainda nos conta sobre um ritual praticado por índios panamenhos que precisam ajudar uma mãe num parto difícil. Nesse ritual, entoado como um canto, o xamã coloca em embate os espíritos protetores que penetram no corpo da parturiente para resgatar o bebê dos poderes maléficos de Muu, o espírito que prende a criança ao corpo da mãe. Esse mito restitui à mulher aquilo de que ela estava privada, e na concepção do antropólogo o mito visa “tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos e aceitável, para o espírito, as dores que o corpo se recusa a tolerar” (Lévi-Strauss, 1949, p. 228).
Aquele padecimento se tratado pelo discurso científico, poderia ser atribuído as causas fisiológicas e “externas”, contudo no trabalho do xamã, o que impera é a integração dos elementos que se apresentam como caóticos num sistema coerente e compartilhado por todos.
O que se destaca desta narrativa mítica é o que se oferece a mulher em vias de dar à Luz, como uma significação para as suas dificuldades. O mito organiza o que de outro modo encontrava-se desorganizado, sendo a expressão verbal (e neste caso musicalizada) daquilo que ocorre com a parte fisiológica, articulando-se do imaginário ao simbólico, perfazendo cura no real do corpo.
É a homologia entre o corpo e o psiquismo o que garante a eficácia simbólica, o xamã oferece uma significação ao insuportável do que a mulher vive através da descrição de personagens, cenas e lugares que são interiores ao espírito da enferma e homólogos, portanto, ao que ela experimenta em termos fisiológicos.
Contemplando o trabalho de Freud (1900), encontramos o material dos sonhos que reaparece igualmente nos mitos, nas lendas e nas crendices populares, bem como nas anedotas da vida cotidiana, e de maneira similar ao sonho, o funcionamento básico dos mitos reside na representação consciente dos medos e desejos inconscientes no nível social e coletivo. Assim, no nível pessoal, em vez de termos um indivíduo que sonha para se aliviar da tensão que provoca pensamentos perigosos, temos, no nível social, os membros de toda uma comunidade tentando reconciliar ilusões e situações inconscientes que se ligam a ações recalcadas.
Ainda em sua trajetória dentro da Psicanálise, C. G. Jung narra uma história sobre uma paciente:
“O médico de uma pequena cidade do cantão de Solothurn tinha-me enviado uma jovem paciente que sofria de incurável insônia. Ela estava definhando por falta de sono e o excesso de narcóticos. O médico não atinava com uma forma de ajudá-la exceto a hipnose ou essa nova psicanálise de que se começava a falar.
Mas a jovem foi-me encaminhada. Era uma professora de 25 anos de idade, de uma família muito simples; tinha completado seus estudos com êxito, mas vivia em constante medo de cometer um erro, de não merecer sua posição.
Tinha entrado num estado insuportável de tensão espasmódica. Era evidente que o que essa jovem precisava era um relaxamento psíquico. Mas não sabíamos muito, nessa época, a respeito dessas coisas. Não havia ninguém na localidade onde ela vivia que pudesse tratar o seu caso e, portanto, veio a Zurique para tratamento.
Eu tinha que fazer tudo o que me fosse possível, da melhor maneira possível, em uma hora. Tentei explicar-lhe que o relaxamento era necessário, que eu, por exemplo, encontrava esse relaxamento velejando no lago e deixando-me levar ao sabor do vento; isso era bom para uma pessoa, necessário para todos. Mas pude ver em seus olhos que ela não tinha compreendido. Captou-o intelectualmente, mas foi só. A razão não tinha qualquer efeito.
Depois, enquanto falava sobre vela e vento, ouvi a voz de minha mãe cantando uma cantiga de ninar para minha irmã, como costuma fazer quando eu tinha uns oito ou nove anos; a cantiga falava de uma menininha num pequeno barco, no Reno, rodeada de peixinhos. E, quase sem fazer deliberadamente, comecei cantarolando o que lhe estava dizendo a respeito do vento, das ondas, do barco à vela e do relaxamento, essas sensações e pude ver que ela estava "encantada".
Mas a hora chegou ao fim e tive de despedir-me bruscamente. Nada mais soube a respeito dela. Tinha esquecido o nome da jovem e do seu médico. Mas era uma história que me obcecava.
Anos depois, num congresso, um estranho apresentou-se como médico de Solothurn e recordou-me a história daquela jovem. "Certamente me lembro desse caso," disse eu. "Tinha gostado imenso de saber o que foi feito dela." "Mas," respondeu ele, surpreendido, "ela voltou curada, como sabe, e eu é que sempre quis saber o que o colega fez. Porque tudo o que ela me contou foi uma história a respeito de velejar com vento ou coisa parecida, e nunca consegui que ela me contasse o que realmente aconteceu. Acho que ela não se lembra. É claro, sei que é impossível curar alguém cantarolando uma história a respeito de barco."
Como iria eu explicar-lhe que tinha simplesmente escutado algo dentro de mim mesmo? Eu tinha viajado muito por mar. Como dizer-lhe que eu tinha cantado para a jovem uma cantiga de ninar com a voz de minha mãe? O encantamento como esse é a mais antiga forma de medicina. Mas tudo aconteceu fora de minha razão; só mais tarde pensei sobre isso racionalmente e tentei chegar às leis que lhe eram subjacentes." (McGuire & Hull, 1982)
O fenômeno mencionado por Jung, pode ser atribuído ao processo que se dá entre dois inconscientes. Quando Jung permitiu escutá-la, percebendo que ali não aconteceu o encontro somente através do intelecto, foi possível captar o que poderia produzir algo nesta menina, que de fato promovesse uma mudança.
Alguns Psicanalistas contemporâneos discorrem sobre esse terceiro analítico, que sem a pretensão de oferecer uma explicação simples, pode ser considerado como aquilo que acontece a partir do que o analisando causa no analista., portanto, está entre ambos, não sendo nenhum deles. Ouso dizer que Jung teria adorado o desdobramento da psicanálise contemporânea.
O essencial neste episódio, são os elementos simbólicos que pode ser vivenciados para cada um, em forma e expressão singulares, que pode ou não existir, já que até mesmo nosso objeto perdido, também é um objeto ilusório, o que nos permite compreender que isso não significa que não seja importante.
Em psicanálise constatamos que até mesmo a ausência encontra na psique suas maiores presenças, ou seja, a mãe que falta é uma mãe presente o tempo todo, diferente da mãe que está realmente presente e se ausenta. E por esta razão a cura pode partir de elementos simbólicos narrados, cantados ou expressados de diversas formas: no lúdico e no artístico, desde que estes reorganizem aquilo que se encontra desorganizado.
A Intervenção do Psicanalista pode ser inesperada e atuar como os velhos xamãs, que do recôndito de suas experiências, através de histórias, oferecem uma significação ao insuportável e invertê-lo para o suportável, o superável, a continuação da vida, mesmo quando apresentada pelo analisando como um discurso de impossibilidade.
Referências Bibliográficas
DUNKER, C. I. L. Por que Lacan? Ed. Zagadoni, São Paulo, SP, 2016.
FREUD, S. (1900). Interpretação de sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Vol. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
LÉVI-STRAUSS, C. (1949). A eficácia simbólica, in Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p. 215 - 236.
MCGUIRE, W.; HULL, R. F. C. Carl Gustav Jung: Entrevistas e Encontros. SP: Cultrix, 1982.
Sobre a Autora
Fabiana Louro é Graduada Psicologia e Artes Cênicas, possui especialização em Psicanálise, Arteterapia e é Pós-Graduanda em Clínica Psicanalítica Lacaniana. Estudou por mais de uma década as Culturas Xamânicas ancestrais e as tribos indígenas americanas, incluindo o estudo dos efeitos das ervas de poder na psiquê. É Membro fundador da LAPP - Liga de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade Nove de Julho e do Lexparte (Laboratório de Psicanálise e Arte da Universidade Federal de Rio Grande/RS), foi pesquisadora dos temas da infância e Juventude, com ênfase ao neurodesenvolvimento infantil: Autismo, protocolos de risco e a clínica psicanalítica e das Psicopatologias da Contemporaneidade e hoje é protagonista de Grupos de Estudos e minicursos com temas da Psicanálise, bem como atua em clínica particular.





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Que legal essa relação, Fabi! Nunca tinha parado pra pensar nisso antes! Texto muito bem redigido! :)
Belíssimo texto Fabiana.
As referências utilizadas são muito importantes para nos ajudar a entender a dinâmica da discussão trazida por você.
Lévi-Strauss, Freud, Dunker, Jung, cada um a seu modo enriqueceu a sua narrativa, a qual advém das suas experiências pessoais e intelectuais.
Pra mim, mais importante do que a erudição de um texto, é sentir a "alma" do autor nele, perceber a intensidade da palavra ressoando e fazer sentido pra mim enquanto leitor.
Seu texto contém esses elementos, erudição e "anima", porque fala de algo que mexe com nossos sentimentos mais profundos, e de relações míticas que nos dizem muito, ao mesmo tempo que nos leva a questionar nossas origens e a origem dos nossos conflitos psíquicos.
E esta…
Um "encontro" de dois inconscientes capaz de curar, em um nível onde o lógico, o controlável, o explicável, não pode ser dono da razão, eis a beleza de Jung e dos Xamãs..
Ótimo texto, adorei o paralelo entre as práticas xamânicas e a psicanálise, muito interessante! ❤️
Texto lindo , sou Reikiana Xamânica, a sua abordagens sobre o assunto é maravilhoso