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O Gozo Castrado das Feiticeiras: Uma discussão sobre o feminino no discurso Patriarcal


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Quando recebi o convite de Jairo Carioca para a sua II Jornada Psicanalítica, com um tema que chamarei da "Ordem do Impossível de representar", eu não hesitei e disse “Sim”, em absoluto.


Após a baixa da euforia por estar entre pares e debater um tema à Luz da Psicanálise, eu retornei a Freud, onde este nos orientava que a visão de mundo da psicanálise, não poderia ser outra, senão a da ciência e claro, como todo texto freudiano, existirá um [mas], não só isso, nós só avançamos na psicanálise considerando que tanto o intelecto quanto a psique são objetos da investigação científica e colocando a psicanálise nesta posição, para sua contribuição à ciência, por não negligenciar o psíquico neste grande quadro que o mundo desenha. (FREUD, 1933/2010)


Pensei, primeiramente, iniciar com uma exploração histórica e antropológica, apresentando as teses sobre a existência de um Matriarcado ou se este foi apenas um Mito, como a própria Simone de Beauvoir (1980)[1] destaca, ou até mesmo pensar nas sociedades que foram descritas como sociedades matrilineares[2], contudo eu decidi deixar isso para os historiadores e antropólogos e explorar a fantasia inerente do ser humano e atraindo o campo da verdade, para a percepção de como capturamos o mundo.


Eu tenho absoluta convicção, que não falo em nome de todas as mulheres, pois como muito bem pontuado em “O Deslocamento do Feminino” por Maria Rita Kehl, o Significante “Mulher”, não pode ser atribuído para um conjunto, onde estariam inseridas todas as mulheres ou o feminino, e mesmo assim, acredito que minha contribuição aqui é para reflexão social, daquilo que temos como o humano, enquanto espécie e reunido em um conjunto que não dicotomiza ainda, em relação as diferenças anatômicas.


Portanto, começarei efetivamente, apoiando-me da literatura, com intuito de alcançar seus corações, e para isso, escolhi a obra de Marion Zimmer Bradley: “As Brumas de Avalon”.


Para quem não conhece, esta obra é uma entre tantas dos contos arturianos, a passagem da velha religião da Grande Deusa para a doutrina Cristã Patriarcal e o aparecimento do Mosteiro onde antes fora o Reino de Avalon.

Contudo, Bradley constrói sua narrativa a partir da visão das mulheres, criando praticamente uma outra história ao recontá-la sobre a perspectiva do feminino de Morgana, A Senhora do Lago, Guinevere, Morgause etc.


Morgana com certeza é nossa heroína nessa narrativa, lutando para manter Avalon, tarefa que significava manter a esperança e a fé da velha religião e na Grande Deusa, que no decorrer nos 4 livros que compõe a narrativa, vai desaparecendo, conforme o Rei Artur tenta equalizar o velho e novo paradigma, e o próprio Mago Merlin, que a priori estaria entre seus conselheiros para manter a balança em equilíbrio, começa a apoiar as investidas do cristianismo.

Quanto mais o cristianismo vai se tornando a fé presente no reino, as brumas vão tomando Avalon e fechando sua passagem, exigindo que apenas os iniciados, aqueles que sabem como abrir as brumas, o alcancem, restando ao comum, a chegada apenas ao lugar onde está o Mosteiro.


Guinevere rompe o véu, mesmo sendo uma cristã, mas em minha interpretação isso é a forma como podemos admitir que estaria na estrutura deste feminino, a capacidade de encontrar a Grande Deusa.

A narrativa contém os temas do incesto e o amor entre Artur e Morgana e até mesmo a gestação de um filho incestuoso, concebido em uma cerimônia sagrada, da triangulação romântica entre Guinevere, Lancelot e Artur e a construção de um amor homoerótico entre Artur e Lancelot.


As mulheres que seguiam a religião da Deusa, ficava claro essa posse de seu corpo e a permissão para o prazer, enquanto as cristãs, estavam restritas de seu direito a desejar, sendo educadas para frear sua sexualidade, a fim de se tornarem merecedoras de seu lugar, como boa mulher, esposa e mãe.

Guinevere não consegue engravidar e é inserida em uma trama que envolve inveja, ciúmes e manipulação, mostrando a ação dos efeitos da repressão religiosa/cultural como formador de culpa e efeito de sentido para explicar seu fracasso.


Morgana aceita o desaparecimento de Avalon, não sem sofrimento, mas encontrando dentro do Mosteiro, uma imagem da Virgem Maria, e compreendendo que a Grande Deusa, encontrou uma maneira de se manifestar no seio daquela nova religião. A pergunta que fica sobre essa solução é: “Sobreviveu, mas a que preço?”


Através desta obra, acredito que fique claro que a existência da mulher, no que concebemos pela história secular, é como essa Grande Deusa, que se olhada pelo arquétipo da Grande Mãe, boa e terrível, foi domesticada de seus desejos e “purificada” através de uma Mulher que se torna mãe, mantendo seu status de virgem, santa e pura, ou seja: “A mulher que não seduz” e, portanto, é segura para o homem.


E sendo pura, santa, casta, também se tornou vulnerável e que necessita ser cuidada, protegida, para que possa manter sua honra. Ela precisa, como a Deusa que era livre e corria nua pelos bosques, ser coberta por um manto e colocada em um altar, cercada por paredes. E a qual, podemos adorar, a distância, como aquela que deu a Luz ao filho de Deus.


Na Santíssima trindade, a mãe e subtraída, dando lugar ao espírito santo. Pai, Filho e Espírito Santo, passam a fazer parte da sacralidade, a mãe é secundária, ela é apenas o recipiente que fez um deus encarnar. Ela é uma incubadora.

E se a mulher, que está no lugar de se tornar a mãe dos filhos de um homem, desejar? Talvez aqui, encontremos a questão da histérica freudiana. A mulher que ousou desejar. O Destino desta mulher é o sanatório e um diagnóstico, retirando-a do conjunto que a mulher sã, ou daquela que abdicou de seu desejo, para se encaixar no desejo do Outro.


E chegamos a tão criticada questão freudiana, mesmo separando o direcionamento para uma posição masculina ou feminina como o resultado do impacto diferente que a descoberta da castração imprime no menino e na menina, adentramos a saída diferencial destes no Complexo de Édipo, sendo o medo da castração, que faz o menino renunciar a ser o falo materno e aceita a interdição da Lei, reconhece o sexo feminino como faltante e submete-se ao significante do falo, que lhe dá as insígnias para sua identidade masculina: - ou seja, ter o falo, nas suas inúmeras versões imaginárias (carros, mulheres, posição na empresa, dinheiro e etc.)

Com a menina, está já entra no complexo de Édipo reconhecendo sua castração, e com a ausência de um significante que represente o seu sexo, este furo, portanto ela representa o sexo oposto no imaginário, atribuindo ao pênis a função de algo que para ela está privado, e que ela inveja ter.


E é muito fácil pensarmos isso, uma vez que até a atividade sublimatória, para os homens sempre ofereceu campos inúmeros de possibilidade de satisfação: as artes, as ciências, a política. Mas para a mulher, o que restava? Tornar-se uma boa mulher para um homem e ser mãe. “A anatomia, era o destino”; ter útero, marcava sua entrada no campo social e seu posicionamento neste teatro coletivo.

Portanto, as mulheres que vestiram calças, usaram pseudônimos masculinos e furaram o discurso, o fizeram pelo significante “homem” e não como uma saída verdadeiramente feminina.


E voltando a psicanálise freudiana, que fez seu criador reconhecer que a sexualidade feminina era um enigma, esbarrando sempre nesta tal inveja do pênis e concebendo três destinos possíveis para o feminino: a repulsa pela sexualidade - inibição da vida afetiva e sexual; o complexo de masculinidade; a verdadeira feminilidade.


E em sua pergunta: “O que quer uma mulher?” a resposta foi: “Ela quer ter um substituto do falo que, onde podemos pensar uma concatenação de significantes que se estabelecem a partir de falo -> pênis -> filho, e assim, tornar-se mulher, portanto, seria tornar-se mãe”. (FREUD, 1931/1980)

A pergunta ainda hoje é: “Apesar da crítica ao falocentrismo, Freud estava errado?”

Ouso dizer que Freud era um homem de seu tempo, e como homem teve seu ponto cedo para compreender a mulher, enquanto razão deste significante marcado pela linguagem, mas não estava errado. Ao que havia a seu dispor, desde suas constatações infantis a vida adulta, era um estreito mundo de possibilidades, que talvez fosse qual marido ter, quantos filhos e como ser boa esposa e mãe.

Kelh (1998) em sua exposição sobre a constituição da feminilidade no séc. XIX que o pensamento sobre o ser mulher, estava sustentado para o discurso proferido por Rousseau, que ainda permeia os paradigmas da nossa sociedade contemporânea:


As mulheres devem ser educadas para se tornar recatadas, resistentes ao sexo de modo a sustentar, com seu negaceio, a virilidade dos parceiros; frágeis e desprotegidos para mobilizar neles a força, a potência, o desejo de proteção; submissas e modestas para melhor governar a casa e a família. (KELH, 1998)



No séc. XXI, podemos dizer que as mulheres conseguiram sair desse estereótipo? Podemos dizer que estamos de fato emancipadas e não cabe mais a nós garantir a virilidade dos nossos parceiros?


Podemos perguntar a muitas mulheres que atingiram altas posições executivas e fazem gerenciamentos de setores inteiros, mulheres empreendedoras e que não necessitam mais de um protetor, digamos financeiro, para que possam sobreviver. Muitas delas, poderão te dizer: “É muito complicado manter um relacionamento.” Algumas, simplesmente, dirão que escutaram de seus parceiros que sua posição os deixava desconfortáveis e outras, dirão que atraíram homens infantilizados, que não buscavam de fato um relacionamento amoroso e sim, um retorno ao materno seguro, e, portanto, viraram suas mães.


Uma outra questão que aparece, é que independente de elas terem sucesso profissional ou acadêmico, ainda surgirá perguntas nos encontros em família ou entre amigos: “Quando você se casa?” ou “Você não vai ter filhos?” e esta lógica não é quebrada para situações homoafetivas, onde também os casais, são interpelados sobre a questão de formar uma família e isso incluí – filhos. E aquilo que parece uma pergunta ingênua, onde se questiona o outro sobre o que ele quer para sua vida, se torna uma inquisição, onde qualquer negativa, passa a ser contra-argumentada como dizeres do tipo: “Mas se você não tiver filhos, quem cuidará de você na velhice?” – Teoria cujo fatalismo das atuais constituições familiares e a sociedade neoliberal, acabam trazendo grande desilusão aos pais, que a seguiram e geração de imensa culpa aos filhos.


Agora a minha grande questão à necessidade de discutir esse tema como um todo que atravessa o humano e não apenas o feminino, é porque aqui reside a expressão de como o homem se posiciona frente as novas configurações da sociedade, que tem a mulher sustentando a sua casa, uma mulher que decide não ser mãe, uma mulher que não quer mais pertencer ao conjunto de “A Mulher”, mas quer ter o direito de sair do questionamento “O que deseja o Outro de mim” para o questionamento “Qual é o meu desejo?”, uma vez que as revoluções deixaram claro que este sempre foi o espaço do homem, a sua busca pela felicidade, mas onde estava essa permissão para a busca da felicidade feminina?


Acredito ser de interesse falarmos brevemente sobre o Filme “Em busca da Felicidade” protagonizado por Will Smith, que narra a jornada de um pai, que é “abandonado” pela esposa, e fica com seu filho e sofre as humilhações de uma sociedade perversa. É uma grande romantização do masculino que se sacrifica pela prole, enquanto vemos que a realidade mostra inúmeras mães solos, que estão fazendo isso dia a dia, mas para elas é natural, é o “instinto materno”, uma mãe jamais abandona seu filho.


Essa esposa do filme, é olhada como uma má mãe; “Como ela tem coragem de fazer isso?” - Quando talvez ela seja a nossa heroína do filme, deixando esse homem amadurecer e se tornar potente por si mesmo, abdicando apenas desse papel que parece, que era um destino escrito na pedra, para várias e várias mulheres, mas assim como o filme, é apenas uma obra de ficção, o papel da mulher, enquanto sujeito de desejo é “Desejar” e encontrar os meios para ser alcançar sua própria felicidade.



[1] Simone de Beauvoir em sua obra "O Segundo Sexo" mostra a não-existência da sociedade matriarcal, visto que a maternidade consumia toda a vida da fêmea, enquanto o macho já exercia um certo controle sobre ela, porque dele dependiam a carne e a proteção do clã diante dos perigos externos. Para Beauvoir, os homens só assumiram na sociedade patriarcal o poder que já detinham sobre as mulheres, domínio que obtiveram na pré-história e que se estende até os dias de hoje, por meio da força física e da violência. [2] Matrilinear trata-se de um sistema de parentesco baseado na filiação pela mãe.

Referências Bibliográficas:


BEAUVOIR, S. O segundo Sexo: Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,1980

BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova

Fronteira,1980

BRADLEY, M. Z. As brumas de Avalon: a senhora da magia. 10. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1989

BRADLEY, M. Z. As brumas de Avalon: a grande rainha. 10. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1989

BRADLEY, M. Z. As brumas de Avalon: o gamo-rei. 10. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1989

BRADLEY, M. Z. As brumas de Avalon: o prisioneiro da árvore. 10. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1989

FREUD S. “Novas conferências introdutórias à psicanálise”. [1933] Acerca de uma visão de mundo. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936) [Livro]. - São Paulo : Cia das Letras, 1933/2010.

FREUD S. A sexualidade feminina. In.: Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud - Rio de Janeiro : Imago, 1931/1980. - Vol. XXI.

KEHL, M.R. Deslocamentos do Feminino. Rio de Janeiro: Imago,1998.



Sobre a Autora:



Fabiana Louro

Graduada em Psicologia pela Universidade Nove de Julho, possui formação em Artes Cênicas no Célia Helena Centro de Artes e Educação e em Psicanálise com abordagem Junguiana pelo Instituto Luz. Concluiu cursos livres em Arteterapia e Arteterapia sob o olhar da neuropsicologia. Estudou por mais de uma década as Culturas Xamânicas ancestrais e as tribos ameríndias, incluindo o estudo dos efeitos das ervas de poder na psiquê. Membro fundador da LAPP - Liga de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade Nove de Julho, pesquisadora dos temas da infância e Juventude, com ênfase ao neurodesenvolvimento infantil: Autismo, protocolos de risco e a clínica psicanalítica, participando do Ciência e Profissão de 2018. Faz parte do grupo de Iniciação Cientifica do Curso de Psicologia da Uninove com o tema: As Psicopatologias do Contemporâneo com orientação da Profa. e Dra Rosana Sigler. Participa como Co-Coordenadora do Curso de Extensão promovido pela LEXPARTE/FURG com orientação do Prof. Dr. Fábio Dal Molin, sob o tema: As Origens da Psicanálise em Édipo/Sofócles e Hamlet/Shakespeare (2020) e Interpretação dos Sonhos (2021), é protagonista de oficinas e grupos de estudo com os temas: Oficina do Inconsciente: Um olhar através da interpretação dos sonhos, arte e os contos de fadas; Oficina de Arte & Psicanálise: um diálogo entre expressões artísticas e a sua dinâmica com o inconsciente e Shakespeare e a Psicanalise: O Estudo dos conceitos psicanalíticos através do sujeito shakespeariano e monitora dos grupos de estudo Mitos no Divã, Desvendando Lacan e Psicanálise e o Feminino[O Gozo Castrado das Feiticeiras: Do Sagrado Sexual da Era Matriarcal ao Prazer Recalcado no Discurso do Patriarcado.]. Atua como Psicóloga Clínica e Psicanálista.

 
 
 

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