DA NORMA À UBERIZAÇÃO:A PRÁTICA PSI NA CONTEMPORANEIDADE
- Ayrton Yuri Alves Souza

- 5 de ago. de 2021
- 10 min de leitura

Atualmente a psicologia clínica vem sendo colonizada por uma demanda extra clínica, uma necessidade constante de construir conteúdos em redes sociais ou então de se apropriar de sites de oferta e procura com avaliações, semelhante aos aplicativos do Uber, Ifood entre outros.
Este processo de digitalização das atividades PSI foi instituído através da RESOLUÇÃO Nº 11, DE 11 DE MAIO DE 2018 do CFP, e atualmente intensificado com a Pandemia do Coronavírus potencializando as atividades do Profissional de Psicologia no ambiente online. Este "Novo Normal" trás um "novo" desafio para a psicologia, bem como, permite que determinadas (re)produções sejam evidenciadas.
O presente texto tem como pretensão problematizar a psicologia como instrumento de um poder de normalização que é capturado pelo discurso normalizante de cada época, à luz de alguns aportes teóricos dissolvidos pelos autores, Michel Foucault, Byung Chul Han, Vladimir Safatle, Christian Dunker, entre outros autores.
O surgimento da clínica

De acordo com os dados históricos a psicologia surge no século XIX, no ano de 1879 com a inauguração do Laboratório de Psicologia Experimental na Universidade de Leipzig, por Wilhelm Wundt (SOARES, 2010). Neste período a psicologia assume um papel de investigar os fenômenos psicológicos individuais (psicologia experimental) e os produtos culturais coletivos, tendo os laboratórios um ambiente controlável para o exercício destas experiências.
Contudo, sustentados nos estudos de Foucault, é possível afirmar que a psicologia é decorrente ao surgimento de discursos médicos, criação dos hospitais psiquiátricos e instituições disciplinares, que ocorreram no século XVIII. Tanto a psicologia quanto a psiquiatria, surgem em decorrência a “necessidades” de responder às demandas produzidas durante o Século XVII, XVIII.
De acordo com Foucault (1996) é neste período que inicia a ascensão da burguesia, é instaurado um novo modelo econômico, a burguesia passa a ter um determinado poder social. Ocorre a dissolução do poder soberano[1] e a implantação do poder disciplinar[2], com esta alteração social, surge a exigência da criação de Instituições disciplinares como Prisões, Escolas, Hospitais psiquiátricos, entre outros.
Compreende-se o termo Instituição, acerca da perspectiva do movimento institucionalista. As instituições são lógicas que se manifestam de maneira explícitas ou implícitas, "segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser hábitos ou regularidades de comportamentos” (BAREMBLIT, 1996, p.25).
Segundo o autor, para que a instituição possa atuar, ela deve realizar-se, isso só ocorre através das organizações. As organizações podem ser grandes ou pequenos estabelecimentos. A Instituição depende da organização para se difundir e enunciar-se, bem como, as organizações dependem das instituições para guiá-las e ter objetivos.
Baremblit (1996) compreende que para análise institucional, é possível observar duas vertentes, a do instituinte e outra a do instituído. O instituinte é o processo, enquanto o instituído é o resultado. Podemos dizer que o instituído é aquilo que é dado como regime de verdade, é o efeito daquilo que se foi do instituinte. O instituinte é o movimento, enquanto força de ação para se alterar aquilo que se está na inércia, cristalizado instituído como tal. Atua dialeticamente através das organizações e dos agentes.
Após ser instituído o novo sistema econômico, o capitalismo, vai se aperfeiçoando o dispositivo[3] econômico que possibilite a sua manutenção. As instituições disciplinares, tem como objetivo o controle dos corpos, produzindo maior rendimento e segurança para os produtos da burguesia. Há um grande sistema de vigilância para que isso ocorra o tempo todo, e todos participam ativamente deste olhar soberano (Sistema) corrigindo e (d)enunciando aquilo que foge da norma.
O discurso disciplinar passa a ter suporte da medicina, a fim de manter a gestão dos corpos. Tanto a disciplina quanto a regulação dos corpos constituem os dois polos para o poder sobre as vidas (FERLA; OLIVEIRA; LEMOS, 2011). É através das ciências biológicas que a medicina conduzirá seu olhar. Este discurso dará à medicina o poder social de ditar o que é normal ou patológico, aqui, falamos da esfera da biopolítico.
Conforme o discurso médico vai ganhando espaço científico, surgem locais físicos para implementação de estudos, como os hospitais escolas. No entanto, ao observar determinadas condições psicológicas e/ou cognitivas, como nos casos de pessoas com deficiências, demências, esquizofrenias entre outros daqueles que fogem da normalidade, a medicina passa enfrentar um obstáculo, aquilo que é incurável. O resultado do incurável é o encarceramento desta população.
Os manicômios e ou prisão, teriam como efeito a regulação, caso contrário a exclusão destas pessoas no corpo social, pois estes corpos, nada poderiam produzir no novo sistema econômico. Eis que surge a psicologia no final do século XIX, como uma tentativa de suprir o discurso biológico, para além desta ótica. Neste primeiro momento a Psicologia é inseparável da fisiologia, bem como da filosofia (SOARES, 2010). Este discurso ainda é hegemônico no campo do saber psicológico, principalmente com os avanços da Neurociência, farmacologia, que é pautada na Biologia.
Neste momento, tanto a psiquiatria quanto a psicologia, estavam atreladas em sua prática às instituições (Universitárias, médicas), mas exerciam seu poder de influência para além das instituições. Os especialistas de saúde ditavam e a população reproduzia (FERLA; OLIVEIRA; LEME, 2010).
Dispositivos de biopoder no Brasil

No Brasil, a psicologia foi regulamentada somente na segunda metade do século XX, antes disso, o discurso psiquiátrico ganhava espaço, do século XIX em diante. É na primeira metade do século XX que a psiquiatria passa a consumir os saberes da psicologia na grade curricular de medicina (SOARES, 2010).
Na Europa o discurso que circulava na comunidade científica era do movimento eugenista, que tinha como premissa os princípios biológicos de Charles Darwin e Mendel, acerca da genética, a relação de biopoder neste período passa a ter mais espaços e vozes, sendo palco de grandes experiências, que possibilitou a construção ideológica do nazismo. Este discurso médico europeu institui na psiquiatria brasileira, sua mesma premissa, em 1922, ocorre a fundação da primeira liga de higiene mental, seguindo a lógica eugenista da Europa (SOARES, 2010). Esta liga tinha como objetivo difundir o saber psi através da lógica experimental, sob a perspectiva eugenista.
É nesta primeira metade do século XX que surgem os hospitais de Juqueri (1893), Barbacena (1903), além do Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes (1937) considerado o maior "leprosário" do Brasil. Estes espaços foram protagonistas de experiências em pró do poder de normalização, assim como na Europa, em alguns casos era impossível este exercício de poder, resultando na instalação de um cemitério em Barbacena.
Ainda na primeira metade do século XX, o Brasil passava pelo seu processo de modernização industrial, principalmente durante a década de 1930 a 1950, “a psicologia ganhou corpo e concentrou-se em três áreas básicas e distintas: clínica, educação e trabalho” (RUDÁ; COUTINHO; DE ALMEIDA FILHO, 2015, p.60). Neste período a presença da psicologia tinha como objetivos diagnóstico, orientação e seleção de profissional, orientações psicopedagógicos e solução de problemas de ajustamentos à norma (SOARES, 2010, RUDÁ; COUTINHO; DE ALMEIDA FILHO, 2015).
Após a regulamentação da psicologia como ciência e profissão na década de 60, houve um grande crescimento de números de instituições de ensino superior e ofertas de vagas. O curso de psicologia teve números elevados de matrículas, do período de 1965 ao de 1980 o curso de psicologia saltou de 142.000 para 885.000 (RUDÁ; COUTINHO; DE ALMEIDA FILHO, 2015)
Importante compreender que o período de 1964 a 1985 foi marcado pela presença do regime militar no Brasil. No ano de 1968 houve a Reforma Universitária que viabilizou a criação de dois tipos de ensino, o primeiro é o ensino público que era vinculado à pesquisa e pós-graduação, com caráter "meritocrático" e seletivo. O segundo teria como característica a inserção do ensino superior em instituições privadas desvinculadas da pesquisa e com menor duração (Corbucci; Kubota; Meira, 2016).
Os atendimentos psiquiátricos e psicológicos ficaram de responsabilidade das Universidades e da rede privada. Muitas vezes os hospitais psiquiátricos tinham plena liberdade na internação de quem quisessem e nas condições que desejassem (MATHIAS, 2018) essa postura tinham dois efeitos, a internação da população desassistida (Pessoas em situação de rua, Negros, crianças com deficiência, mulheres e amantes), tornando um local de descarte dos corpos, e também as famílias com condições de pagar as internações, utilizavam dos hospitais psiquiátrico para furo na previdência social, aposentavam-se por invalidez.
Na década de 70 o Brasil e o mundo vive a eclosão do movimento sanitário, que tinha como objetivo a alteração dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, ofertando equidade nos serviços, “e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado” (BRASIL, 2015).
Em 1978 surge o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), este movimento era formado por integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas. Este movimento passou a denunciar as violências nos manicômios, a mercantilização da loucura, o modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais e deficiências, e a hegemonia da rede privada de assistência (BRASIL, 2015).
Após a queda da ditadura militar e o surgimento da constituição de 1988, surge também o SUS, conforme o SUS ganha espaço, seu dispositivo de Saúde mental também era discutido e promovido, ganhando estruturas físicas e tecnologia de saber extramuros, como resposta a um Brasil sem manicômios, surgem o RAPS com os diversos equipamentos CAPS, Centro de Convivência, NAPS, Hospitais Dias entre outros equipamentos.
Com a queda da ditadura, houve também a crise econômica e a necessidade de estabelecer a economia brasileira. A década de 90 foi caracterizada por grande oscilação econômica, iniciando com uma profunda recessão decorrente do Plano Collor (ALVES, 2003). O modelo econômico mundial, passa a ter mais uma transformação, surge então o neoliberalismo, que visa minimizar as intervenções do Estado na economia, através da retirada do mercado e projetos que facilitem os vínculos dos empregados e patrões. (Alves; 2003; SAFATLE, 2020).
O Estado agora, tem como objetivo a “despolitização” da sociedade, para que assim possa instaurar-se a relação necessária de autonomia da economia, para que isso ocorra, é necessário que haja a desinstitucionalização das instâncias que regulam a vida social, ou seja, é necessário “retirar toda a pressão de instâncias, associações, instituições e sindicatos que visassem questionar tal noção de liberdade a partir da consciência da natureza fundadora da luta de classe” (SAFATLE, 2020, p.18).
O neoliberalismo recebe amparo agora de uma “gestão pós-disciplinar”, que em suma, é uma tentativa de construir uma mentalidade de massa, com finalidade de economizar ao máximo o recurso às técnicas coercitivas do poder disciplinar. Surge agora a verborragia que ecoa no corpo social do “empreendedor de si mesmo”, essa retórica torna-se a nova norma social, sem distinção hierárquica ou de classe social, produzindo o declínio dos projetos coletivos, pautando apenas no indivíduo “desprovido de referências coletivas e suportes institucionais que faz sozinho, por si mesmo, sua própria trajetória sob uma mobilidade indeterminada” (SOARES, 2020, p.105)
Dispositivos contemporâneos e a gestão pós-disciplinar

O filósofo Byung Chul Han (2015; 2017) aponta para um novo formato de sociedade, não mais a sociedade disciplinar de Foucault, mas sim uma sociedade do desempenho que elimina de seu discurso o “sujeito da obediência” como mencionado anteriormente e instaura a positividade do poder. O que está em jogo nessa nova “gestão pós-disciplinar" é a exclusão do negativo, do conflito e constante afirmação do positivo como reguladora das relações (HAN, 2015; 2017; SAFATLE, 2020; SOARES, 2020).
É na década de 90 com os avanços da computação e equipamentos eletrônicos, que a psicofarmacologia ganha espaço, a neurociência passa a ter melhores formas de verificação e teste de suas drogas, podendo agora responder às demandas que outrora a psiquiatria não respondia. Surgem também a psicologia positiva e os discursos de Coaching com maior ênfase, assim como, medicamentos mais sofisticados, tudo para que este sujeito não entre em contato com o negativo e sempre esteja produzindo.
Com a pandemia esse discurso se intensifica, a sociedade, assim como a psicologia, agora tem que se adaptar aos modelos da era digital, surge algumas plataformas[4] que possibilitam os pacientes-clientes encontrar psicólogos-prestador de serviços, em um modelo semelhante ao Uber, o efeito é a “uberização” da prática psi. O termo “uberização” condiz com uma nova forma de gestão, organização e controle de trabalho, pautado pela mediação de uma empresa-aplicativo que proporciona alguém que oferta e alguém que procura, negando a vínculo empregatício do trabalhador uberizado, aquele que oferta, o resultado é a gerenciamento de si, acarretando em “diferentes estratégias pessoais para a garantia da própria remuneração” (ABÍLIO, 2019, p.03).
A prática psi pautada no modelo de uberização possibilita que o paciente, agora visto como cliente, avalie o desempenho do profissional psi, através de estrelas e comentários, colocando o profissional psi na berlinda da positividade. Surge também a constante necessidade dos profissionais psi de produzir conteúdo acerca do universo psicológico, como cartilhas de desenvolvimento pessoal, explicações de psicopatologias, vídeos “cómicos” para narrar experiência, entre outros tipos de conteúdo alheios a prática psi e acadêmica.
Se anteriormente a psicologia era atravessada pela verborreia disciplinar, do controle e regulação da vida. Na contemporaneidade o profissional psi está submetido a regulação da positividade coercitiva (HAN, 2015; 2017). Submetendo-se a constante avaliação do paciente-cliente sobre o conteúdo que produz e a terapia. O conflito durante a prática terapêutica, é atravessado pela exigência hegemônica da positividade do poder que a todo tempo pode ser denunciado com uma avaliação ruim, caso não agrade o paciente-cliente, impedindo que novos pacientes-clientes entrem em contato com tal profissional por sua constante avaliação negativas.
Segundo Han (2015; 2017) Safatle (2020) Soares (2020). a sociedade pós-disciplinar não suporta sentimentos negativos, impedindo o acesso e elaboração de emoções negativas, em toda sua relação, eliminando de si toda e qualquer negatividade, bem como, a negatividade do contato com o outro. A alteridade prevê a imanência da negatividade, impossibilitando o encontro com o diferente, na prática, pois isso é colocado em jogo o tempo, não é à toa que a preferência a terapia/análise individual é preferência tanto dos profissionais psi, quanto dos pacientes-clientes.
Diante do exposto, é preciso questionar, quais os efeitos da gestão neoliberal nas práticas psi? Quais os efeitos dos projetos de uberização na prática de atendimento? Quais os riscos destas práticas ecoar o discurso hegemônico da positividade do poder? Parece que tal discurso promove não só a exclusão da negatividade, mas também, aqueles que possam promover o conflito, o desconforto do encontro, como no caso das pessoas em situação de vulnerabilidade, eis que surge a tônica da “geração mimi” como resposta a negação do conflito promovido por estes agentes sociais (Pessoas com Deficiências, Pessoas Negras, LGBTQI+, Movimento Feminista, entre outros). Afinal a sociedade positiva, “vai bem obrigado”.
[1] De acordo com Foucault (1996) o Poder Soberano era constituído pelo corpo do rei. A presença do rei estava em todo o lugar, somente ele poderia ditar as condenações e as regras;
[2] O poder disciplinar é um conjunto de relações, através dos diversos recursos e agentes da sociedade. Ele não é corporificado, todos e ninguém podem ter. Ele atua nas esferas micropolítica para macro, e da macro para micro, portanto, é assimétrico (POGREBINSCHI, 2004).
[3] Os dispositivos são é a rede que se pode tecer todo o corpo social, através da produção do saber científico, possibilitou a criação de discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais (FOUCAULT, 1999, p.244)
[4] https://www.vittude.com/,https://www.doctoralia.com.br/,https://zenklub.com.br/,http://consulte.me/,https://buscoterapia.com.br/,https://www.fepo.com.br/, entre outros.





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Me veio a mente o texto "A negação" 1925 como seria a interpretação de Freud frente as novas configurações da clínica?
Muito bom, esclarecedor, leitura bem dinâmica e concluindo com a realidade em tempos de pandemia. Gostei muito.
Que narrativa massa véi. Vários questionamentos, apontados de uma maneira muito prazerosa de se ler. Venho me questionando sobre essas questões também, mas a maneira como você contextualizou essas questões, esses problemas que nós e os colegas enfrentamos e vamos enfrentar, foi muito boa e pertinente. Parabéns pelo texto !! A mensagem chegou aqui.