Antígona, a Ética da Psicanálise e o Pensamento Crítico Por Adilson Martins dos Anjos
- LAPP
- 27 de ago. de 2023
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Este ensaio tem por objetivo discutir a Ética e o pensamento crítico, sendo que optamos por trabalhar, a partir da leitura do Seminário 7 de Lacan, no texto em que articula a ética da Psicanálise a partir da leitura crítica do texto de Sófocles intitulado “Antígona”.
A função do pensamento crítico de acordo com Dias, et al, (2011), apud (Saiz & Rivas, 2010), é propiciar ao aluno universitário instrumentos capazes de potencializar uma tomada de decisão mais adequada, para uma resolução mais eficiente dos problemas que surgem quotidianamente em diversas circunstâncias. Ainda de acordo com os autores, apud (Barnes, 2005):
“o pensamento crítico é uma forma de raciocinar sobretudo valorizada no Ensino Superior, dado ser esse um momento decisivo na formação dos indivíduos, em que se tem em vista uma formação de qualidade e uma entrada ajustada no mercado de trabalho, onde deverão ser competentes para dar resposta aos desafios aí elicitados.”
Mas, antes de adentrarmos no texto de Lacan, propriamente dito, é preciso tecer uma noção básica do que vem a ser a ética, principalmente a ética em relação à Psicanálise, e neste sentido, KEHL (2002, p.7), nos diz que há, ao menos, duas formas de abordar as relações entre a Psicanálise e a Ética, sendo que em relação à Psicanálise, diz respeito à ética profissional, esta direcionada à proteção dos “clientes” que se submetem ao tratamento psicanalítico, assim como há as éticas de variadas profissões, cujo objetivo é evitar eventuais abusos cometidos pelos analistas exatamente pelo fato da posição privilegiada que o analista ocupa no setting em função de um conceito caro à psicanálise que é o amor de transferência, de modo que se faz necessária uma certa regulamentação, seja da própria concorrência profissional, seja da formação do psicanalista, através das instituições que transmitem o saber psicanalítico e a segunda forma de abordar a questão se refere às implicações éticas em que a Psicanálise, enquanto um campo do saber surgido no Ocidente, se pôs a questionar a os pressupostos éticos da sociedade do final do século XIX, ao mesmo tempo que propõe uma nova ética para o mundo contemporâneo, principalmente quando Freud abalou algumas convicções a respeito das relações do homem com o Bem, propondo uma nova forma de pensar os fundamentos éticos do laço social, em função da nova descoberta, ou seja, a do inconsciente, deixando evidente que o homem não é dono nem mesmo da sua própria casa (a chamada terceira ferida narcísica), e que estas manifestações inconscientes influenciam a ação humana, uma vez que:
“ O homem está sempre tentando ampliar o domínio simbólico sobre o real do corpo, da morte, do sexo, do futuro incerto. Mas essa produção de sentido não é individual – seu alcance simbólico reside justamente no fato de ser coletiva, e seus efeitos, inscritos na cultura.” (Ob. Cit. p. 9).
Há uma ética da Psicanálise e ela se fundamenta num conceito fundamental e podemos verificar de forma bem clara, através do pensamento crítico de Lacan, quando ele trabalhou o texto de “Antígona”, para estabelecer sua teoria sobre a ética da Psicanálise, ou seja, a forma como ele conseguiu articular os ensinos psicanalíticos, com base em um texto de uma peça teatral, traçando os paralelos entre sua obra e a obra Sofocliana, surgindo daí, uma nova conceitual, conhecida por todos como a Ética da Psicanálise, uma Ética do Desejo.
Lacan biênio 1959/1960 (Seminário 7) realizou mais um dos seus seminários, onde apresentou suas teses sobre a ética da psicanálise e trouxe sua discussão baseada na história de Antígona, ou seja, a ética psicanalítica buscada por Lacan em Sófocles deve ser entendida como sinônimo da mais absoluta singularidade, que não é predita e não se normatiza.
Ao falar sobre ética, Lacan propôs o fundamento de uma ética própria da Psicanálise referida ao desejo isolado por Freud como o campo constituindo o campo do wunsch (desejo), tratando-se, portanto de um terreno da ação, uma experiência cuja dimensão ética procurou ressaltar, sendo que essa ética não visa um ganho, mas se inscreve numa perda, por meio de um ato e não é referida à intencionalidade (passo compreendido por Antígona, de modo que Lacan elege como paradigma da relação do sujeito com o campo do desejo inconsciente.
O ponto central da tragédia é a decisão de Antígona de desobedecer à ordem de Creonte que proibiu o sepultamento de Polinices no território de Tebas. Na verdade, ele proibiu o sepultamento puro e simples, pois poderia permitir que as honras fúnebres fossem prestadas fora dos limites da cidade, mas ao impor tal proibição, sua intenção foi causar desonra ao nome da família (da qual ele mesmo era parte), bem como não permitir que Polinices ingressasse no mundo dos mortos.
Antígona evoca em seu favor as leis divinas e não escritas – Diké (Justiça) e os deuses ctônicos (deuses dos mundos inferiores, dos mortos, do Hades), cujo fundamento é que, todo morto deve ser sepultado – deixar o morto insepulto é uma desonra da estirpe (família) e à própria memória do falecido.
E, o que está em jogo nessa tragédia? O contraponto entre a cidade (Polis), lugar das leis escritas e dos Deuses do Olimpo e o mundo inferior, das leis não escritas, a Diké.
Creonte representa a Lei da Polis (Kerygma) – serviço dos bens, seu decreto representa o bem de todos os cidadãos da Polis, a qual é voltada ao culto dos deuses superiores do olimpo, esses mesmos deuses superiores que outrora venceram os Titãs, que foram condenados a habitar os infernos ou mundo inferiores.
Antígona não se orienta por nenhum bem (nem mesmo o seu próprio bem), e sua decisão não decorre de devoção familiar ou religiosa, ainda que a ela esteja relacionada, pois ela proclama que as leis não escritas não podem ser revogadas.
Ao reclamar o direito de sepultar o irmão Polinices, Antígona evoca os deuses inferiores, o Hades, e o ato de sepultar os mortos tem por objetivo a proteção do solo e dos laços de sangue, costumes esse fixados há muito tempo, tempos imemoriais e que foi recalcado, a partir do advento do ordenamento civilizatório.
Por conta de tal ato, Antígona foi condenada a ser emparedada viva, mas tomou controle sobre a própria morte, suicidando-se no interior da tumba, tomou nas mãos o próprio destino.
Lacan fixou nesse ato de tomar nas mãos o próprio destino, a própria Ética da Psicanálise: “o desejo não se confunde com um bem. No limite o desejo só se realiza em perda, por meio de um apagamento radical do sujeito.”
Portanto, a ética da Psicanálise implica uma condição trágica segundo a qual o sujeito humano deve transpor o limiar do Bem, a fim de garantir, em ato, o campo do desejo. Denota-se que o ato de Antígona não contraria/infringe as leis de Zeus (da Polis), nem a da Diké (Justiça do mundo inferior), ela não agiu segundo nenhuma lei estatutária, mas seu ato responde às regras não escritas, que não são meramente imperiosas. Ao agir assim, ela dá vigência às leis não escritas. seu ato é único e não pode ser reproduzido. Só vale para ela, ela não pretende estabelecer um padrão universal de conduta. enquanto a lei da Polis visa o bem de todos, logo tem um valor universal, já que é para todos os cidadãos da Polis.
O que leva Antígona a invocar as leis não escritas, para desobedecer ao Decreto de Creonte é o fato de saber que a morte é comum a todos os homens. A morte marca nossa carne em vida, a vida é marcada com o selo da morte, ou seja, o que nos faz humanos é a certeza da morte. Podemos até mesmo citar aqui um aforisma de Freud (1915, p. 246): “Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte.”
Desse modo, Lacan nos propõe que o sujeito é também aquele que só tem acesso à vida no momento que consente perdê-la, nela se perdendo e Antígona conhece a consequência de seu ato, ou seja, ser emparedada viva, e isso tem um significado muito importante, do ponto de vista do sujeito ser sujeito a partir da linguagem, pois para Lacan, não há sujeito fora da linguagem, fora da ordem do significante e sua entrada nesse campo advém por intermédio de uma perda, uma cessão de objeto, que o sujeito é em última instância. Desse modo, Antígona ao ser emparedada viva entre o mundo dos mortos, fica fora do mundo da linguagem (logo, deixará de ser sujeito), ao mesmo tempo que não pertence ao mundo dos mortos.
Da mesma forma, Polinices, a partir da proibição de Creonte, condenado a ser um cadáver insepulto (logo, fora da linguagem), é morto duas vezes entre
os vivos, ou seja, a morte biológica propriamente dita e a morte moral, posto que condenado a ser um cadáver insepulto, logo no mundo de cima, da Polis, não é mais um sujeito, posto que fora da possibilidade de falar, mas ao não ser sepultado, não pode também fazer parte do mundo dos mortos, ou seja, não ser falado (in memorian).
O sepultamento dá dignidade ao morto e o inscreve em um outro universo simbólico, pois a sepultura o identifica como pertencente a uma família, a uma estirpe, a uma cultura, portanto a um significante outro que estenderá viva a sua memória na história. É contra isso que Antígona luta, ou seja, que a memória de seu irmão seja apagada pela negativa de Creonte de que ele Polinices receba um funeral, um túmulo e as homenagens necessárias ao seu ingresso ao mundo dos mortos.
A sepultura não é outra coisa, senão uma inscrição simbólica, cuja função é contornar o vazio, a morte não está inscrita no inconsciente, porque o inconsciente não conhece a negação (Freud, 1925, p. 282). É o campo da linguagem que introduz a morte no discurso.
Antígona funda a ordem significante, ela não visa se opor à Polis ou à ordem de Creonte, mas quer garantir por seu ato, essa mesma ordem, tratando-se por isso de um passo ético por excelência, posto que, o sujeito só tem acesso à vida por meio da morte que o significante engendra, logo, vivemos para parir a morte, cada vez que nos lançamos, em perda, na direção apontada pelo desejo. Eis a ética da Psicanálise.
Referências Bibliográficas
DIAS, Anelise Silva et al. Competências de estudo e pensamento crítico em alunos universitários. 2011.
FREUD, Sigmund – Obras completas, volume 12: introdução ao narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e outros textos (1914-1916: tradução Paulo Cesar de Souza – São Paulo – Cia das Letras, 2010. (p. 209/246).
FREUD, Sigmund – Obras completas, volume 16: o eu e o id “autobiografia” e outros textos (1923-1925: tradução Paulo Cesar de Souza – São Paulo – Cia das Letras, 2011. (p. 275/282).
KEHL, Maria Rita – Sobre ética e psicanálise – São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
LACAN, Jacques, 1901/1981 – Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960/ Jacques Laan; texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; (versão brasileira Antônio Quinet), - Rio de Janeiro: Zahar, 2008. (p. 289/340).
SÓFOCLES, aprox. 496-406 A.C. Antígoba de Sófocles / tradução de Millôr Fernandes – São Paulo – Paz e Terra, 2015 – (Coleção Leitura).
Adorei o texto, Adilson! Para complementar o debate, a Psicanalista Ana Laura Prates tem uma série de discussões sobre a "Antígona", que elaborou no período da Pandemia, estão bem interessantes! Tem uma Live com o Quinet.